De passagem

Te observo discretamente. Assim que meus olhos te vêem chegar, começo a acompanhar seus gestos, seus movimentos. Tem um jeito suave. Chega sempre com um livro nos braços, vestindo calça social, camisa e sapato. Imagino que seja estudante de direito. Já até tentei ler o título do seu livro, pra ver se consigo descobrir mais sobre você.

Acho que só eu te percebo. As outras pessoas, sentadas, distraídas com as ruas, com a conversa no celular, não parecem ter te notado ainda. Talvez nunca notem. Nem mesmo àquelas pra quem você sempre cede lugar, gentilmente. A cada cadeira vaga, você olha pros lados. Chega se há algum senhor, alguma senhora, alguma mulher em pé. Nunca se apressa em sentar-se, a preferência é deles.

Foi em meio a um desses movimentos seus que meus olhos finalmente te encontraram. O ônibus foi esvaziando, os lugares sendo ocupados por novos passageiros e você permanecia em pé.  Chamou minha atenção e comecei a te acompanhar. Rapidamente reconheci em você qualidades tão raras naquele pequeno espaço. Foi aí que você me cativou.

Já dividimos o mesmo transporte algumas poucas vezes. A cada encontro, eu me atesto do seu comportamento.  É verdadeiro, rotineiro, não uma virtude de um dia de bom-humor.

De você, só conheço isso. Aparenta ter uns 25 anos, mas não tenho certeza. Também não sei o nome, onde mora, qual seu ponto final. Desço sempre antes e já te vi ocupando o lugar que antes era meu.

Tem tempo que a gente não se encontra. Estou saindo de casa um pouco mais tarde, mas devo reajustar meus horários. Em breve voltamos a nos ver.  Tenho quase certeza que assim como é invisível para os outros, sou invisível pra você. Daí reside a graça. Posso ficar à vontade, não preciso disfarçar. Também não quero te conhecer, nem me exibir pra você. Quero somente guardar pra mim essa sensação gostosa de que no meio de tanta gente, só eu experimento o prazer de te observar.  É como se eu avistasse um amigo de longe e com a imagem dele, viessem as lembranças do que já dividimos.


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