Com saudade, Marina.


Dona Maria foi minha vizinha durante uns 15 anos, pelo menos. Uma senhora solteira, que morava com a mãe em uma casa verde e rosa - fato que, por si só, já a tornava singular.  Mas se fosse preciso ressaltar apenas um adjetivo para defini-la, seria, certamente, gentil. Ela é dessas mulheres unânimes, queridas, predispostas e fazer o bem, a acolher e a ajudar. Presente na medida, sem nunca invadir a vida do outro... e responsável por espalhar delicadeza à sua volta.

Quando d. Maria tocava a campainha lá de casa, vinha sempre com um prato de doce ou de algum quitute em mãos. Por anos, me presenteou com lindos cartões de aniversário... e mantinha, sempre, as portas abertas pra um café da tarde, um boa conversa e muita disponibilidade para ouvir. 

Sem saber, ela ajudou a construir em mim um imaginário do que deveria ser a vida em sociedade. Ainda que povoados por problemas, pela falta de tempo e pelas dificuldades de convivência...  abrir mão da gentileza é um erro gritante que cometemos.  Pra quem teve a sorte de, como eu, aprender o valor dela desde cedo, o caminho contrário é uma escolha ainda mais equivocada. 

Eu bem que podia ficar aqui listando as cenas que já presenciei, de pessoas perdendo a compostura e o respeito próprio e pelo outro; assim como poderia me recordar das vezes em que perdi a chance de ser delicada e gentil... mas já há dedos demais apontados pra todos os lados. E como silenciar, enxergar e ouvir são lições preciosas que tenho assimilado, decidi compartilhar as perguntas que tenho feito pra mim. Como a de entender o que engatilha, em nós, essa raiva contra o que é diferente. Ou a escolha de ver, no outro, o motivo da nossa impaciência, ansiedade e frustração. E de achar que o nosso tempo, os nossos desejos e as nossas necessidades são prioritárias. 

Não há trânsito ruim sem motoristas; clima de trabalho pesado sem funcionários; problemas de condomínio sem moradores. O abstrato não se concretiza por si só, muito menos determina como agimos. Talvez a falta desse reconhecimento de que nossa ação se reflete diretamente no coletivo alimente os discursos antigos, as práticas falidas e esse clima de estranhamento constante.

Li, recentemtene, um texto do Afonso Borges, criador do projeto Sempre um Papo, a respeito do novo livro da Adélia Prado. Ele falava do interesse dela em nos lembrar que não ouvimos o outro, apenas aguardamos o momento de dar nossa opinião. Fingimos dialogar, pra continuar exibindo nossas ideias e pontos de vista. Nem ler mais, lemos. Passamos os olhos nos textos, procurando palavras com as quais concordar ou não. Fazemos comentários em cima de títulos ou, no máximo, da leitura de algumas poucas linhas. Temos grupos no whatsapp pra exercitarmos a escrita mas, quase nunca, a escuta. Quantas vezes aparece alguém perguntando detalhes do que já foi "dito"? Ou rebatendo algo sem o cuidado de entender o que já foi pontuado? Há até quem se abstenha de falar sobre qualquer assunto, com medo das reações raivosas que uma simples opinião pode suscitar. 

Que medo é esse que desenvolvemos de conhecer o mundo do outro? Será, mesmo, tão assustador descobrir que o oposto também traz em si algo que pode fazer sentido pra nós? Quantos carregam ainda o conceito mocinho/vilão pra sobreviver?  Fico pensando que essa veemência em se defender - e a suas ideias, seus valores, seus comportamentos- mascara uma espécie de intuição de que a vida pode até ser mais interessante e feliz se eu me abrir, mas não sei ainda o que fazer com tudo aquilo que vai ruir à minha volta. O que talvez leve à outra pergunta: quanto de escolha, e de imposição, há no caminho que você segue?  

Deve haver alguns segredos pra manter a simpatia- e a empatia- pela pluralidade. Imagino que pessoas em paz com sua trajetória achem esse exercício mais simples. E consigam, portanto, exercer com mais frequência os atos de delicadeza. Mas pode ser, também, extremamente gentil não impor ao outro o que te pesa. Compartilhar, sem entregar a fatura. 

Gosto da imagem de uma criança brincando de construir castelos de areia. Imagino que seja uma memória comum à maioria. Eu me lembro de escolher uma posição estratégica pra isso, porque fazia parte da brincadeira ver o castelo inundado pela água, muitas vezes destruído antes de ser finalizado. Começávamos do zero, achando graça em tudo porque reconstruir era natural. De castelo em castelo, um dia após o outro... e muitas mãos pra driblar a velocidade do mar. Não que nossa vida possa ser encarada exatamente da mesma forma. Os materiais mudam, o tamanho dos castelos, também. O que permanece é a inconstância, a certeza de fases, cliclos... daí a sorte de ter uma dona Maria por perto. Melhor, ainda, seria ser lembrada, assim, por alguém. Quer legado maior?

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