Fora do roteiro

A moça de cabelos curtos e com uma criança no colo foi até o balcão e pediu um Hi-fi.  E acrescentou: capricha na vodca porque eu tô de férias! Eu também estava de férias, mas até então, minha grande válvula de escape tinha sido um sanduíche com batatas fritas que eu comi minutos antes de ouvir o pedido dela. Fiquei na dúvida se pedia uma banana split, pra entrar no clima retrô - mas a expectativa dos dias que passaria na praia me mantiveram na linha. Uma pena, já que seria surpreendida por horas e horas de chuva ininterrupta.

Foi, sem dúvida, uma viagem fora do comum. De última hora, me vi embarcando sozinha. E graça à ausência do sol e dos bons ventos, conheci as melhores companhias de viagem a uma Bahia chuvosa. Embora precavida- e com dois livros à tira-colo - seria difícil prever o que aquela jornada me reservava.  Por mais que desejamos, com muita ardor, que a vida nos surpreenda, nunca estamos, de fato, prontos para o que ela pode nos oferecer.  Temos essa mania de controlar até as surpresas, o inesperado. Engraçado isso, não? Fugimos como loucos da rotina, dos finais previstos, mas nos vemos completamente paralisados quando qualquer tipo de plano sai dos eixos.

Há alguns anos, alimento um hábito que me traz um certo conforto. A cada viagem, escolho um item que deixarei pra trás. Pode ser um frasco de shampoo, uma meia velha, um biquini gasto... dou preferência para algo que já me serviu e, agora, pode ser deixado de lado. Essa sensação de deixar a mala mais leve me consola, porque, talvez, acredite que viagens servem pra isto: nos ajudar a desconstruir verdades, conceitos, castelos de mentira que criamos pra nos proteger. Há um senso comum de que voltamos de uma viagem com a bagagem cheia de sei lá o que... eu gosto de apostar no contrário. Quanto mais nos libertamos de tudo o que nos impede de ser, quanto mais nos abrimos pro novo e pra tudo o que pode fazer sentido, mais leve - e livre-  é a jornada.

Mais silenciosa também.  Percebi, há algum tempo, que dialogo com poucos amigos. Com muitos, apenas escuto.  Porque muitas vezes não há, de fato, brechas para falar. Em outras, há o momento da fala, mas não há o da escuta.  Existe uma espécie de seleção do que é ou não importante, do que merece ou não nossa atenção...  Em contrapartida, nos sentimos muito tentados a falar, tagarelar, desabafar, nos exibir,  ao menor sinal de interesse do outro lado.

Talvez seja, justamente, a vulnerabilidade que nos torne mais empáticos ao outro. E, por isso, tantos laços sejam construídos nesses momentos. Seja numa praia sem sol e com chuva, seja em época de grandes mudanças e perdas... Em situações como essas, não é preciso nem falar pra que nos sintamos ouvidos.  Para que entendamos que o outro é "gente como a gente". E para que a gente pare de fingir que a vulnerabilidade reside num lugar muito específico, distante, raramente visitado.

Quando ouvi, pela primeira vez, a palavra resiliência, fui procurar no dicionário seu real significado. Falamos tanto em prosperidade,  conquista, sucesso, felicidade, desafios, mudança... ; nos gabamos de metas tidas como ideais no mundo contemporâneo e líquido; desejamos pra nós e pra nossos afetos conquistas aprovadas pelos valores em alta... ; reproduzimos uma tentativa meio ingênua de dizer que tipo de sonho e adjetivo devem ou não ser levados em conta... Quando o o que a vida pede da gente, de verdade, é a capacidade de se adaptar, de se transformar e de continuar a ser belo, de acolher e fazer com que tudo exista em conjunto. E pra conviver, é preciso haver menos eu, menos você, menos ele, menos ela...

"Sempre tem gente pra chamar de nós...", diz a música interpretada pelo Marcelo Jeneci.  Eu mal sabia, mas a mulher do Hi-fi se tornaria uma das companheiras de viagem. E graças a ela, ao marido e às outras mulheres que conheci, a viagem de duas - que se tornou de uma - acabou virando um passeio inesquecível de seis mulheres em uma ilha da Bahia. Se tivesse sido combinado, não teria dado tão certo!



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