Havia uma pequena fila em frente à porta dos fundos da padaria. Cinco ou seis pessoas aguardavam por sacolas, cheias de comida. Um senhor as colocava num carrinho e saía correndo com ele. Depois voltava pra buscar mais.  Os embrulhos eram levados pra um outro grupo, que ficava ali pertinho. Eles abriam e separavam o que tinha lá dentro.

Vi tudo isso de relance, quando passava por perto. Decidi perguntar ao dono da banca de revistas se aquelas sacolas eram doações da padaria. Ele me contou que era o lixo. As doações eram levadas, mais cedo, pra um asilo. O grupo que chegava por volta das 7 da noite esperava pela mistura dos restos, pra então separar a comida que havia lá dentro.  Eu tinha acabado de sair do supermercado com bolsa cheia de produtos fresquinhos. Não foi nada fácil seguir a caminhada. Ficou entalado, como o encontro que eu tinha tido minutos antes.

Toda vez que vou fazer compras vejo esta moça, que deve ter menos de trinta anos, e a filha, uma criança de uns 6. Elas ficam bem na entrada do supermercado, pedindo comida.  Eu a cumprimento sempre, já dei chocolate, biscoito...  mas tem dia que é só o "oi" mesmo.  Hoje ela me pediu um suco. Eu entrei sem falar nada e  enquanto enchia o carrinho, fiquei me questionando se devia ajudá-la. Por mais que a gente sustente um discurso de igualdade, de justiça social... há dias em que a gente está mais sem paciência, cansado... ou sem entender como e por que as pessoas escolhem (escolhem? será? mas será que não, também?) ficar assim. O "passeio" pelo supermercado durou uns 10 minutos só, e eu fui embora depois de dividir uma baguete com a mocinha e a filha. 

Eu não sei nada da vida dela, mas sei que eu não daria conta de viver daquele jeito. Lido mal com sujeira, fome, não ter a liberdade de fazer escolhas... E por algum motivo, é nesse caminho tortuoso que aquele ser humano está. Se alguém já ofereceu ajuda, se existe opção pra ela, se não existe nada disso, se ela pede porque precisa, porque aprendeu a fazer isso, porque prefere, nada disso eu vou saber. Mas eu sei que qualquer uma dessas ou de outras opções me levam pra mesma conclusão- eu não estaria bem em nenhuma dessas situações. E isso me basta- ou tem que me bastar- pra eu ter compaixão. Pra eu aprender a respeitá-la e ainda que não lhe dê nada, enxergar que ela- e a filha, e os que estavam na fila do lixo da padaria -, todos eles merecem mais.

O que me leva a constatar, também, que de uma forma ou outra, criamos uma espécie de seleção daqueles que merecem nosso respeito e ajuda. Sad, but true. Quantas vezes você já ouviu e falou que não tem condição de ajudar todo mundo que precisa? Ou que te pede ajuda? Não que essa não seja uma verdade, mas, cá pra nós,  tem dor que dói mais na gente. Como no caso de uma tragédia, de famílias desabrigadas por causa de enchente, rompimento de barragem... Isso dói mesmo. Incomoda tanto que a gente parece só dar conta de respirar de novo depois de fazer alguma coisa. A vítima do drama que a gente acompanha nos reflete muito dos nossos medos, da nossa vulnerabilidade e até da nossa sorte.  É mesmo mais comum acolher o problema e o sofrimento que está perto, que nos é detalhado... a gente escuta, reflete.. cria empatia. 

Mas o que não falta é problema ao nosso redor.  Portanto, é mesmo compreensível que a gente faça essa seleção inconsciente - ou consciente- do que vai enxergar.  Do que vai adotar como causa. Ou até se vai dar as costas. Assim como a moça que fica na porta do supermercado, a gente também está em caminhos tortuosos - cada qual a seu modo. 

A metáfora que me vem agora é que somos vários barquinhos tentando chegar a um destino- que ganha formas diferentes, de acordo com as nossas expectativas, buscas e desejos.  Me parece até que o mar é igual pra todos nós. Mas tem barco rachado; com furo; que parece intacto; cheio de remendos; tem até fragmento de barco que não existe mais. Tem navegador que só enxerga a linha reta, tem aquele que tenta fugir das ondas, tem o que estende a vela e deixa por conta do vento, tem o que estudo o vendo... tem o que decide remar, o que pula do barco e vai nadando...  Dividimos a mesma fonte de correntezas e calmaria.  Mas ainda que não estejamos no mesmo barco (pra usar uma expressão comum), traz muito conforto saber também que não estamos à deriva. 

Não é só da luz no fim do túnel que precisamos pra seguir em frente. Nós contamos, todos os dias, com chamas mais discretas, que abrem muito o nosso caminho. É fácil reconhecer o bem que o outro nos faz quando isso suaviza um grande sofrimento, mas nos esquecemos de perceber o quanto a convivência conosco exige daqueles que nos cercam. A paciência, o entendimento das nossas limitações, a aceitação de quem somos...  

Fico imaginando quantas vezes estive, metaforicamente, sentada na calçada, aguardando a doação de alguém.  Penso nos momentos em que algo brotou ou incomodou o suficiente pra que eu saísse de lá. Ou de quantas mãos ficaram estendidas até que eu enxergasse alguma. A vida é mesmo cheia de clichês e falar dela é um mergulho neles. A gente espreme e chega sempre ao mesmo ponto. 

Hoje, ao chegar em casa, trouxe comigo essas pessoas que vi lá fora, que se tornaram personagens dessa crônica e que tocaram o meu coração. Vou dormir desejando que protagonizem textos mais alegres, noites mais felizes, que ultrapassem as ondas e que, já em terra firme, possam avistar possibilidades no horizonte.  



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